CARISMA
"O meu clube estava à beira do precipício, mas tomou a decisão correcta:
Deu um passo em frente....", João Pinto, capitão do FCPorto,
in calinadas do futebol português
O passeio de domingo dos Pedaleiras tinha-lhe dado alguma confiança, embora as pernas já não lhe obedecessem nos últimos 10 km, e com razão ainda não estavam recuperadas da meia maratona do bikevora. Desconfiava dos géis que impingira e que lhe aceleravam o metabolismo, levando os músculos ao limite. Tivera que parar mesmo uns 10 minutos para se recuperar, mas antes da uma da tarde lá acabou os 55 kms na praça do Giraldo.
Alguém lhe dissera para aparecer às palmeiras, que iria aguentar. Desconfiando dele próprio, mas confiando na bateria do telemóvel que quando ele estourasse, lhe restassem ainda forças para balbuciar a palavra magica que acionaria o aladino táxi da família, direto ao seu encontro.
Muito concentrado nos buracos da estrada, próprio de quem anda no campo – no norte dizem monte –, após cada aldeia lá ia dizendo que aquela já estava e que mal se lhe acabasse a gasolina voltaria para trás, sem se aperceber, às tantas, que se o fizesse a distância seria maior do que seguir em frente. Encheu o bandulho na paragem misturando banana com cereais e marmelada. Mal fizera 500 m já no retorno quando ouviu uma voz a dizer-lhe para enfiar a grande. Sem pensar lá a engatou ao mesmo tempo que pensava “já?”. Estranhando o que lhe parecia ser cedo de mais para tal, embora já tivesse ouvido dizer que no regresso a coisa endurecia e era cada um por si. Atrapalhou-se um bocado, quando a voz voltou de novo “embala, embala”. Desta vez, obedeceu às cegas enquanto sprintava atrás da voz que se foi colocar na traseira de um monstro de ferro, daqueles modernos, que vindo de trás, iniciava a ultrapassagem ao grupo a 50 à hora.
Assim que entrou na aspiração pode finalmente respirar, coisa que se esquecera, desde que deixara de ouvir a voz, abafada pelo motor daquele monstro enorme, mas de certo modo reconfortante.
Começou a saborear aquela paz como se estivesse num deserto sozinho. Estranhou o facto de o vento ter desaparecido como por milagre. De repente sentiu que o monstro se movia cada vez mais depressa, o que o obrigou a fazer o mesmo contra sua vontade. Nem se apercebeu que entrara numa rampa ligeiramente a subir. Desejou que a paz anterior voltasse. Obedecia como por instinto a cada aceleração, até esta se tornar impossível de continuar. Soltou um “ah kaberão de méer da” de satisfação na despedida, mas agradecido pelos momentos acabados de viver, e já não deu a pedalada até ao fim.
A voz reapareceu para lhe dizer que a subida acabara e que se acelerasse poderia ainda recolar. Acelerou novamente e retomou a posição anterior. Agora já sabia ao que ia, a experiencia ás cegas anterior já era coisa do passado de que já nem se lembrava. Agora podia aproximar-se da grade do monstro de ferro que seguia à sua frente, tocar-lhe mesmo se quisesse. De vez em quando tinha que travar, outras que acelerar. Deu-se ao luxo de começar a experimentar as mudanças para encontrar uma na posição em que não forçasse muito as pernas, ou que não fosse leve de mais e lhe estourasse com a caixa respiratória numa qualquer aceleração.
Quando a encontrou, começou a preocupar-se com algum pau ou buraco que estivesse na estrada. Olhando pelo interior do monstro conseguia ver mais terreno, mas atrás da roda pareceu-lhe melhor escolha, porque via o pneu ressaltar e lhe daria centésimos de segundo para corrigir a rota. Agora já podia olhar para o conta quilómetros e ver que a velocidade rondava os 45 km, algumas vezes mais. Pareceu-lhe que o condutor do monstro de ferro tinha um comportamento algo malandro, pois mantinha a velocidade nas retas e metia prego a fundo nas subidas. Em vão, já lhe apanhara o jeito. Estava na disposição, por ele, de levar a manhã naquilo.
De repente a mudança não entrou, voltou à anterior e tentou compensar em rotação. Viu que o condutor aproveitou para acelerar ainda mais. Encheu-se de brio, levantou-se e começou a sprintar, de encontro á roda de um dos dois companheiros que com ele compartiam a aventura. O que ficara a meio caminho entre o monstro e ele apercebeu-se que a subida se iria prolongar, deixou-o passar enquanto tentava vislumbrar alguma avaria mecânica. Então a mesma voz anterior, desta vez corporizada num rosto atrás de si, fez-se ouvir de novo, “pára” gritou-lhe.
Bolas não é justo, agora que estava a sentir-se tão bem. Agora que bastava uma nova aceleração e retomaria o lugar, embora a distancia tivesse passado para 50 metros, depois 70, e a cada nova olhadela, mais e mais distancia. Nem se apercebeu que na rampa mesmo que pouco inclinada, nunca mais lá chegaria. Enquanto recuperava o fôlego, deixou de pedalar e começou a perder velocidade, proporcional ao distanciamento que o monstro ia conseguindo. Quase parado, lá travou finalmente e encostou á berma da estrada.
Uma rápida análise ao carreto, trouxe-o à realidade. Um bocado de desperdício, deitado fora por algum mecânico distraído, enrolara-se ao carreto, felizmente na parte dos andamentos mais leves. Respirou fundo. Estivera à beira do abismo, mas travara a tempo.
Mais tarde alguém comentaria que conseguira um feito extraordinário que poucos ainda se deram ao luxo de poder sentir. Alguns levam uma vida inteira à espera de uma oportunidade destas e nunca o conseguiram ou não se atreveram a tal. Para ele, lembrando-se da mulher e filhos, achou que tivera sorte...de principiante com o desperdício, que o poderia ter atirado ao chão.