FICÇÃO
"O cu é a parte do corpo que mais depressa esquece os maus tratos”.
In O mundo do fim do mundo, Luís Sepúlveda
Todos os domingos pela manhã, sempre que não tem provas de competição, é dos primeiros a chegar às garagens. Sonha de véspera com os companheiros/adversários que irá encontrar nesse dia, a quem vai ter que dar uma lição, mas só a alguns. Irá tentar impor um andamento tal que poucos conseguirão ir na roda. Depois de partir o grupo todo, começará com os esticões e as tentativas de fuga. Terá que ter alguma paciência, para que o momento chegue, pois os gajos mais velhos, tem a mania de não despregarem lá da frente nos primeiros quilómetros e só o fazem quando a primeira subida aparece. Às vezes escolhem caminhos sem subidas e demora mais tempo a chegar esse momento por que tanto espera. Só quando mete carga no treino da véspera é que lhe não agrada muito que outros imponham andamentos de loucos. Nesses dias só fala no treino do dia anterior e espera que não haja muitos cabeços.
Estas manhãs de domingo assemelham-se em tudo às corridas em que participa. Mas é mais fácil ganhar aqui. O pessoal nem sempre se organiza a persegui-lo como lhe fazem lá. E também não há prémios, mas a malta fica a saber como ele está a andar bem neste momento. Aliás é esta a razão principal porque cá vem competir como nas corridas.
Um dia destes ficou admirado ao ver o Três Pedais entrar-lhe pela garagem adentro, para lhe pedir de volta uma câmara de ar, que este lhe emprestara á coisa de 15 dias, quando já pensava em telefonar à mulher para o ir buscar, porque nem tivera tempo de avisar os outros do furo, já que seguiam obcecados com a mania das corridas – já era o segundo furo do dia e no primeiro desenrascara-se porque fora logo á partida -, valeu-lhe então os Três Pedais que o safou porque tinha ficado para trás a aliviar a bexiga, durante a paragem no café, e quando chegara cá fora não vira vivalma. O Três Pedais fazia parte daquele grupo de ciclistas que o admirava pela quantidade de troféus e taças que colecionam todos aqueles que ao longo dos anos entram nas provas de competição. Daí o seu silencio quando este, olhando as prateleiras preenchidas com outros apetrechos, que não as taças, o questionou acerca do paradeiro das mesmas. Continuando com a inspeção visual á garagem o Três Pedais insistia na pergunta e como não obtinha resposta ele mesmo a deu.
- És um vaidoso. Mandaste-as limpar não foi, meu vaidoso?
Perante novo silêncio embaraçoso, o Três Pedais, na sua humildade complacente, resumiu:
- Pronto não digas nada. Agora percebo a tua demora na devolução da câmara de ar. Estás sem pilim. E logo tu que andas em tantas corridas, que pena teres que vender todos os troféus. Que porra de crise.