21 de Setembro de 2010

 

“Quem fez isto?” perguntaram os Alemães a Picasso, enquanto observavam a tela

Guernica, onde este imortaliza a destruição perpetuada pelos bombardeiros de Hitler

em 1936, sobre Bilbao, a que ele respondeu:

- Foram vocês!

 

Era mais uma daquelas visitas familiares em que somos arrastados sem saber porquê, mas porque sim dirá a matriarca, e além disso o teu primo mais novo faz anos. O recém ex-tropa, para não se aborrecer, aproveitou uma folha solta de um caderno de linhas, onde se guardam as receitas caseiras que se apanham da televisão, da rádio ou de alguma vizinha. A família distraída pela conversa nem reparou que começaram a cair sobre a dita folha alguns traços e rabiscos, mas ao miúdo aniversariante a curiosidade aguçou-se-lhe. ”O que é que estás a fazer?” “um desenho” “Posso ficar com ele?” “no fim”. E pegou na bicicleta acabadinha de estrear e foi dando umas voltas orgulhoso. De vez em quando voltava para espreitar a evolução dos traços. Cada vez mais espaçado e desinteressado, dividido entre a bicicleta recebida e o rumo que os desenhos estavam a tomar, longe dos traços iniciais mas ainda compreensíveis para si.

Quando anoiteceu e a visita terminou, recebeu da mão do tropa a folha: “toma”. Olhou para o desenho e não o percebendo (já à muito tempo) perguntou: “O que é?” “és tu”.

Infelizmente no dia seguinte o tropa tinha que cumprir os seus últimos dias de farda na prisão militar. Não se portara bem no destacamento que fora cumprir missão nos Açores, e a guia de marcha indicava claramente: dois dias de “gaiola”.

Regressado a casa, lá houve tempo então para desfazer as malas, dos 6 meses de afastamento do continente e da família. Num dos bolsos, das calças para lavar, saltou um quarto de papel A4 rasgado á mão, que ainda amarrotou mais, enquanto finalmente sorria. “O que é?” “o meu fim de semana na prisão”. E deu-mo, melhor: abarbatei-o, desamarrotei-o e tentei interpretá-lo.

Tentei, digo bem. Durante vários minutos olhei para um papel desigual nas pontas, aproveitado do rascunho de algum requerimento, e na parte de baixo pontificavam desenhados, calculo que no chão, dois lagartos em luta, tentando morderem-se sem razão aparente, ou por algo que não estava no desenho, enquanto lá do alto do papel, um só olho os espreitava através do centro de uma grade suspensa no ar, igual ao símbolo cardinal (#).

Foi quase com clemência que pedi, ordenei e implorei, para que me explicasse o significado daquele desenho. Insisti, barafustei e não desisti. Finalmente a anuência, talvez pela minha insistência ou mais como pena da minha ignorância:

- Sabes, um desenho ou uma tela, grande ou pequena, não se explica a ninguém. Assim como também não uma fotografia, um texto, seja ou não poesia, ou até mesmo uma peça de olaria do Redondo. E continuou a falar.

A partir desse dia passei a admirar, a valorar e a ser igual àquelas pessoas que entram num museu, e ficam horas a olhar para um quadro, tentando, agora finalmente sei-o, decifrar a história daquele momento, que o desenhador fez parar no tempo como se de uma foto se tratasse. Passei a perceber aqueles que desfrutam a ler, reler e tentar compreender melhor um texto, citação ou uma passagem literária. Finalmente já desfruto a olhar, espreitar ou observar uma foto, não como as avós desconfiadas fazem quando o neto está longe, ou mesmo no estrangeiro, quando se certificam várias vezes ao dia de que os traços fisionómicos estão no caminho certo dos do pai em criança. A explicação daquele dia fora clara:

- Enquanto lá estive na prisão, vi como os guardas brigavam entre eles, nos vários turnos. Senti que o prisioneiro não era eu, eram eles. Eu só lá ia por dois dias. Eles tinham que lá viver.

 

À memória do Chico, perecido por falta de apoio médico, na madrugada de Los Angeles,

enquanto os portugueses deliravam com a medalha de Carlos Lopes.

publicado por Ubicikrista às 13:19

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