Ficção
A Asma e a Lesma
Ao fim de minutos a dar ar ao aro, quase ficava com uma roda daquelas lenticulares, que me daria jeito com o vento lateral.
Quando acabei, nem ciclistas, nem carro de apoio ou vassoura, nem o raio que os parta. Mas lá fui atrás deles, até que cheguei a um sítio onde as estradas, segundo a poesia arquitectónica dos senhores engenheiros construtores, se enlaçam umas nas outras que nem uns amantes, vindas de todos os lados para confluir numa rotunda. Aqui para nós que ninguém nos ouve, as rotundas, parece uma ideia tirada daqueles filmes com uma fulana no meio, rodeada de homens nus, todos com os sinais de trânsito devidamente a confluir também para ela. Deveriam ser proibidas estas insinuações pornográficas na via pública. Onde é que estes arquitectos estavam com a cabeça? Inspirações na Internet de certeza. Aqui á 30 anos não deixavam fazer arte deste calibre na estrada. Ainda perguntei a um brasileiro daqueles que vendem férias se já passaram os ciclistas:
-Há que tempos homem. O que é que você esteve fazendo. Cagando?
Caganda lata, pensei cá para mim. E eu que sou um apreciador da simpatia brasileira. Sim, pá Tia talveiz, ainda o ouvi dizer.
Aqui estou eu 2 km mais á frente sentado num muro. O que é que eu vou fazer á minha vida? Tenho aqui uns contactos no telefone, mas de que me servem se não se conseguem ver de dia com esta claridade toda. O único numero que sei de cor é o da minha sogra, pois era para lá que a minha ex dizia que ia, sempre que saía de casa toda aperaltada – agora que nos separámos quem passa lá o tempo todo sou eu, mas só por causa dos netos. E da comida, confesso. Vou ligar a avisar, já que não sei onde estou, para não esperarem por mim para jantar.
Pois é, a minha ex agora tem um enteado novato. Ela disse-me que o estado lhe dá 200 aerios para ele não trabalhar. Ainda assim muito inferior ao que ganha o pai dele (236) de reforma por ter andado toda a vida, imaginem, a trabalhar.
O gajo quis espetar um piercing para valorizar o desemprego, mas disseram-lhe que a lei não lho permite. Mais sorte teve a irmã ao espetaram-lhe uma agulha para um aborto, mas isso já a lei autoriza.
O pai dele tentou fechar uma janela que dá para as traseiras onde 2 pombinhos (eu não disse um pombo e uma pomba) passam o dia a fazer marmelada (oxalá que não seja para a venderem em cubos) mas não deixam, porque isso é fazer obras. Mais sorte teve o tio dele, no ano passado quando foi despedido da fábrica, e lhe ficaram com a casa, juntou-se a outros nas mesmas condições e vá de construir umas barracas. Aquilo já parece um bairro, mas não há problema, não é considerado obras.
Eu também tenho um filho adolescente menor, que para não ficar a polir o sofá lá de casa ou na luta de 5x1 levava-o para me ajudar nas distribuições, mas o puto não pode andar comigo deste que apanhei uma multa, pois 2 funcionários do ministério na sei do quê, consideram isso trabalho infantil. Mais sorte teve a minha ex com o nosso puto de 6 anos. O gaiato tem mesmo jeito para contar anedotas. A mãe até já largou o emprego e acompanha-o até às 2 e 3 da manhã por essas terreolas do país ao fim de semana. Diz ela que ele gosta de adormecer encostado ao peito. Também eu gostava e mesmo assim deixou-me. Sacana do puto até nisto me ganha. O que me alegra é que ele não ganha só a mim, ganha para todos nós.
Quem também ganhou foi o que deixou de ir comigo. Ganhou uma chapada, estava a pedi-las. Agora querem-mo tirar por violência doméstica. Um colega dele lá da escola matou o pai, mas nem pode ir a tribunal, porque é menor.
Eu bem digo à mãe que tenho muitos gastos com ele, sobretudo seringas para uma doença hereditária, que o malandro apanhou não sei de quem e que na farmácia me custa 100 mil reis dos antigos (50 cêntimos). È preciso azar porque o filho da vizinha de cima, como é drogado, dão-lhe as seringas de borla lá na farmácia do bairro ali mesmo à minha frente. Também lhas dão de borla lá na prisão, quando passa lá umas temporadas, mas aí não lhe servem de nada, visto que é proibida por lei a droga nos estabelecimentos prisionais.
Aleluia, já não é preciso fazer mais contas há vida, passou agora mesmo um carro da prova que ficara para trás porque se lhe acabou a gasolina e me fez sinal para o seguir. Falei-lhe do aumento de preços, a meter conversa, satisfeito por voltar a montar na bici e seguir caminho, ao que ele me respondeu:
- Ná! Na foi do aumento. Eu meto sempre 5 euros, já dantes metia 1 conto de réis.
Parvos. Nem andei 10 minutos. Atão não é que a malta decidiu parar aos 200 km. Porque o itinerário tinha mais que o previsto e ainda faltariam 20, que o almoço em vez do combinado ia ser pataniscas devido ás inscrições de ultima hora, que as estradas por onde passáramos estavam todas esburacadas, que as descidas não eram tanto a subir como no antigo percurso, que não havia barritas, que não foram distribuídas as camisolas a dizer pratique actividade física mesmo no horário de trabalho (descarregar paletes também conta?), inscreva-se no LETANI (Liberte-se, Exercite-se, Transpire, Agora ou Nunca, Insista), que os policias de transito é que aumentaram o andamento, que no ano passado um ciclista tinha chocado com um carro dos acompanhantes que se metera no meio e a organização não obstante o seguro, nem um tusta tenha dado ao ciclista, que partira um braço, o cócxis, um artelho, que andou com alcatrão num joelho durante 3 meses, que ficou só com uma orelha dum lado e até ficou com um raio ligeiramente largo, coitada da bicicleta.
Ingratos, e até fui eu que tratei da inscrição. Parecia que estava num consultório médico a responder a tanta informação. Nem os gajos que vão a tribunal respondem tanto ao juiz. Já em novo tinha dúvidas com esta história do responder: a professora queria que eu respondesse sempre, mas a minha mãe tinha outra opinião e sempre me ensinou (perdão, me gritou):
- Cala-te, não me respondas!
Eles bem me pediram os dados do meu colega Sufrino Bombas para pôr lá na ficha de inscrição on-line, mas eu atirei-lhes umas datas do nascimento e do BI ao calhas. Depois queriam números da Segurança Social, da Caixa de Previdência e depois do Abono de Família, da coleira do cão e por aí fora. De zero a nove foi só escolher. Também com a prática que tenho de ouvir os colegas lá no trabalho à sexta-feira:
- Zéi, atira aí uns numbros pó bolhetim da malta.
… Epílogo
Vocês nem devem saber quem eu sou. Porque gosto muito de passar despercebido, nem gosto de ir lá para a frente mostrar os pneus novos, como alguns fazem. E só lá vou no final porque os meus colegas já se cansaram de se exibir, senão não ia. Então eu discretamente, ponho-me de pé, meto a roda grande e como sempre chego às paragens em promero porque gosto de me sentar no melhor sítio da sombra, não sou dos que me ando a exibir nas etapas. Só o faço porque como já vos disse, quero ser o primeiro a sentar-me e mais nada. Não tenho interesse em mais nada, aliás, só para vocês verem, quando o meu sogro me perguntou se eu queria a filha dele para casar ó quêi, eu prontamente, perdão, discretamente, disse logo:
- OK.
Estou tão viciado a mamar roda, que até a subir aproveito, pois sou tão discreto que posso andar na roda de qualquer um, quando não estão a olhar. Hoje, no inicio de uma subida, ia sendo apanhado, quando o gajo à minha frente se ergueu do selim, travei, desviei-me para o lado e raspei-me dali. Um dos que vinha atrás bateu-me com a minha roda traseira na da frente dele. O que me safou (disse ou não disse que sou discreto?) foi os outros terem-lhe acertado por detrás ao mesmo tempo que eu. È bem feito, para não andarem tão coladinhos na roda duma pessoas nas subidas.
Outra coisa que me dá gosto fazer nas subidas é quando o pessoal vai todo à rasca e eu venho lá detrás esgalhado e a ultrapassar neles pela direita. Mas deixem que vos diga, que é sempre com descrição que passo tanto um, como um montão deles. Hoje desviou-se um para o lado direito e ia-o traçando ao meio. Fartou-se de me pedir desculpa, mas no fundo pasmado de onde é que eu apareci, pois momentos antes pareceu-lhe ver que não vinha lá ninguém. Sou assim, o que é que querem: não venho lá e no momento seguinte, discretamente, já lá estou. Depois em voz alta procurando apoio popular, e mais uma vez, discretamente sublinho, recrimino:
- Vou eu a tentar recolar e este gajo atravessa-se à minha frente.
Mas mais giro mesmo é naquelas pequenas inclinações logo á partida, aos domingos, quando o pessoal ainda vai nas calmas a conversar e ainda vão aqueles principiantes do caneco lá na frente. Primeiro atiro:
- Hei pessoal, já viram tanta lesma. Olhem bem para estas lesmas. È só lesmas á minha frente. Afastem-se delas.
No inverno, então é de morte. Alguns usam um guarda-lamas na roda detrás, senão as calças ficam todas encardidas no sítio onde as costas mudam de nome. Nessas alturas não resisto em meter-me com eles. Simulo ultrapassá-los momentaneamente, enquanto aviso:
- Não podem vir na roda, senão salta laminha para trás.