06 de Fevereiro de 2010

FICÇÃO

Sugiro veementemente a Vossa Excelência que procure receber contribuições inusitadas

no orifício cocorado, do qual é proprietário, sito na região sacro-ilíaca

- do meu amigo Vasco, se alguma vez se zangar

 

A determinação com que um ciclista isolado pedala para a meta, por vezes já todo roto, é coisa que nos espanta sempre. Mas, e a determinação das mulheres? E se essas mulheres forem as esposas dos ciclistas? Vejamos. Voluntarina é uma esposa tão determinada que raramente dá o braço a torcer, pelo contrário. A sua determinação ficou bem patente enquanto ela esperava pela fisga da persiana da janela da sala, que o marido chegasse de mais um Évora-Caparica, quando lhe pareceu ver um vulto no quintal. Aproximou-se por detrás e sem fazer barulho, deitou-lhe a mão às partes baixas enquanto perguntava: quem é você. Não tendo obtido resposta, determinada, apertou com mais força e insistiu: quem é você. Nada. Já com pedaços de pele entre as unhas dos dedos, fez um ultimato. Finalmente o vulto explicou-se:

- Sou o mudo!

Voluntarina não é assim com todos. Com o seu marido, a quem os amigos chamam Pedal de Prata, para ela o seu PêPê, apenas lhe ralha por este ser teimoso em não querer admitir que é por ele que se atrasam sempre durante a semana para o emprego, mas que para andar de bicicleta todos os domingos e feriados até se levanta meia hora antes. Ele não concorda e acha que é é determinado, afinal ele é apenas um homem adaptado aos tempos modernos e à correria da vida, e para o provar levanta-se sempre com determinação cinco minutos antes de saírem de casa. Desfaz a barba com a máquina numa mão enquanto come uma maçã com a outra, a seguir escova os dentes enquanto com a outra mão faz o xixi matinal. Por vezes já tem feito amor com a mulher enquanto penteia a sua farta calvície.

Voluntarina, como qualquer mulher ou esposa, parece ter mais tempo para pensar, e num desses domingos em que Pedal de Prata, depois de 4 horas a pedalar até Monsaraz, quando se preparava para o duche retemperador, reparou num letreiro por cima da sanita a lembrar-lhe que ali se deve urinar sentado. Foi com um grito de horror da esposa que, 2 minutos depois, quando esta ia buscar a camisola interior suada, as meias e os calções (cuecas não, que não é material que ciclista use), para meter tudo na máquina de lavar, deparou com ele, meio sentado, mais para o deitado, no chão da casa de banho, a um metro da sanita e dali a tentar acertar lá dentro, num rigoroso exercício de cumprimento de ordens escritas, que ele não queria desobedecer, pois uma vez já tentara o divórcio indo mesmo a Tribunal. O Juiz até lhe pediu para lhe dizer qual o motivo para se querer divorciar da esposa (da esposa pois – ainda este ano se esperam divórcios de esposos). Meio envergonhado lá respondeu que ela o tratava como se fosse um cão! Mas, insistia o Juiz, maltrata-o, bate-lhe, não lhe dá de comer?
- Não! Quer que eu lhe seja fiel...

As esposas são mas é umas ciumentas, pensava. Ele sempre tivera aquela amante. A qual, segundo a esposa, dedicava quatro horas numa manhã em cima dela, mas que com ela, não aguentava mais de duas horas... nas compras (bem perto do recorde das duas horas, 12 minutos e alguns segundos, que é o limite da paciência de qualquer homem, segundo dados científicos comprovados).

Aquele grito ainda não lhe saíra dos tímpanos enquanto se limpava do duche. Como é que iria explicar à esposa que ele não gosta mesmo nada de fazer alongamentos, nem antes, nem depois das andanças de bicicleta. Também não percebia como é que ela não entendera o esforço, para ele quase desumano, de tentar arranjar uma posição no chão frio daquela casa de banho, dos cálculos matemáticos que tivera que fazer para tentar minimizar qualquer eventual percalço que fugisse ao desvio padrão estimado, já descontando a sensibilidade perdida, com quatro horas sentado em cima dos ditos cujos, entalados entre uma esponja dos calções já uma bocado surrada, e aquele rasgo interior no meio de selim, que lhe tinha aconselhado um outro ciclista, em vez do de gel que o deixava dormente. Daí evitar parar a meio dos percursos, para urinar, como alguns faziam, porque uma vez metera a mão dentro dos calções e não achou nada, ou pelos menos por apalpação não a reconheceu. Por isso ainda hoje se gaba perante todos de ter duas: a dele, a genuína, e a outra para andar de bicicleta.

Se a esposa é uma força da natureza, o que dizer da irmã dela. É cá de uma fibra (não, de carbono não). Uma vez quis experimentar a nova linha de comboio até Lisboa e à pressa pediu ao Ferreira da bilheteira para lhe dar um rectangulozinho daqueles de ida e volta. Para onde? Atreveu-se este que lhe conhecia a estirpe.

-Para aqui outra vez, para onde havia de ser!

Fogo. E então com os miúdos? Gosta de se por no gozo com os pequenos que ainda acreditam no Pai Natal. Mas uma vez, quando no quintal, o marido lhe disse para ter cuidado com o tipo de força que estava empregar no taco contra uma bola, comprados havia semanas no Lidl do sítio: Vais partir o vidro da janela do novo vizinho. Nem que fosse um camião carregado de pessoas a dizer-lhe isto. Nada a detinha, tão determinada e decidida que era. Para o marido, era apenas teimosia e dizia-lho. Minudescências, relativizava ela.

O estilhaço de vidro partido fê-la soltar um duplo Ops. A realidade veio a seguir. Eu bem te avisei. Vais comigo enfrentar a coisa e sabermos quanto nos vai custar isto. Foi a sua determinação que a fez tocar à campainha. Recordou-se que em miúda tentara, aos saltos, chegar àquela mesma campainha, quando surgira um polícia que se ofereceu para tocar por ela, mas a seguir avisou-o:

-Agora fuja, que eles costumam amandar água.

O podem entrar, o vidro da janela espalhado pelo chão, a bola de golfe junto a uma garrafa partida perto da lareira, o homem sentado no sofá, que não quer saber dos prejuízos e ainda por cima lhes agradece por lhe terem partido a garrafa na qual estava prisioneiro á milhares de anos, e que lhes quer pagar a sua libertação e subsequente passagem de génio a homem, concedendo três desejos, um para cada e guardando o outro para ele. O marido disse logo que queria um milhão de euros por ano enquanto vivesse. O homem olhou para ela que nem pestanejou – uma casa em cada país do mundo que visitaria. Este também anuiu, mas alertou que desde que ficara preso naquela garrafa nunca mais tinha tido oportunidade de estar com uma mulher. E virando-se para o marido esperou um sinal. Ela ainda ouviu o marido referir que tinham ganho um montão de dinheiro e de casas e que a contrapartida até nem era significativa. Determinada já nem o ouviu, enquanto subia as escadas para o quarto. Quando duas horas depois, do qual nos dispensamos de comentar, de uma luta de corpo a corpo debaixo dos lençóis, e já quando se vestiam, o homem lhe perguntou pela idade dela e do marido, apontou com resposta 34 ele, e 28 ela.

- Porra! E vocês ainda acreditam em génios?

Este marido é o tal que não quer nada com bicicletas. Prefere a pesca e os barcos. A única coisa em comum entre este tipo de homens pescadores e os ciclistas (tal como os caçadores), é estarem sempre a pau com o tempo, pela internet. Este, aqui há uns tempos atrás, num domingo, como de costume, levantou-se cedo, colocou os agasalhos, vestiu-se silenciosamente, tomou o seu café e até foi dar um passeio com o cão, pelas imediações do gagómetro do bairro (casas de banho para cães, mas com o buraco muito alto, o qual estes não chegam, por muitos saltos que dêem – não têm campainhas, nem policias por perto – sem utilidade pratica porque a limpeza fica por conta dos vizinhos incautos que se atrevem a pisar a relva, com os seus ténis com sola de rodados de trator, que levam as ofertas perfumadas para o interior dos seus lares. Tal como o acordo ortográfico, cuja lei ninguém cumpre, o ‘Proibido pisar a relva’, tantos anos espezinhado só agora começa a ser respeitado pelo português, mesmo que por receio. Aqui para nós. Se eu fosse cão andava eufórico. A relva é muito superior ás alcatifas e sem a agravante de ter de ouvir os berros da dona e os subsequentes castigos, e ao limpar o rabo não pica tanto. Deve ter acontecido o mesmo aos jogadores de futebol, quando mudaram da terra batida para a relva. Começaram a rebolar-se mais. Qualquer dia, com tanta queda pelo meio, até os ciclistas vão adotar este piso. Agora a sério, os nossos donos ainda não perceberam porque é que nós gostávamos mais do outro piso. Fazíamos e tapávamos com terra porque não suportamos o nosso próprio cheiro). Em seguida, foi até à garagem encheu os pneus do jeep. De repente, começou a chover torrencialmente. Havia até neve misturada com a chuva, ventos a mais de 40 km/h. Ligou o rádio e ouviu que o tempo seria de frio e chuva durante todo o dia.
Voltou imediatamente para casa. Silenciosamente tirou a roupa e deslizou rapidamente para debaixo dos cobertores. Afagou as costas da mulher, suavemente e disse-lhe baixinho: ‘O tempo lá fora está terrível’. Ela, ainda meio adormecida, respondeu:
- Acreditas que o cabrão foi à pesca com este tempo?

As Irmãs, por estas e por outras é que estão zangadas à muito tempo, um dia ao cruzaram-se num caminho, uma delas a que levava um bovino atado a uma corda, atirou: Atão vais passear a vaca?  A outra, muito admirada: Essa agora mana? A gente não se falava há tanto tempo! Mas olha que te enganaste, isto não é uma vaca, é um boi!
- Ê cá não falei contigo. Foi com a vaca.
Pedal de Prata, cunhado desta e esposo da outra, a Voluntarina, é um ciclista imaculado, tal como a esposa não obstante a irmã e o marido desta, mas que também tem a sua própria determinação, que a ser diferente, se deve à sua descendência Judia. Em novo, já ele se distinguia por andar determinado em fazer gazeta á escola. O seu pai, judeu orgulhoso, determinado em pagar-lhe os estudos. Face a tanta nota negativa a determinação de pai falou: A continuares assim sais do colégio judeu e prego contigo num colégio católico. Como as notas continuaram uma tragédia, só comparável ao jogo do Paulo Bento com o Bayern de Munique, a determinação de pai cumpriu-se. A partir dali o filho judeu só tirava excelentes. Tal facto levou o pai a questionar tanta determinação aos estudos:

- Mal aqui cheguei fui com colegas e professores a uma igreja. Vi lá um homem crucificado, com pregos nas mãos e pés, olhar de quem sofreu muito, parecido ao nosso quando subimos ao castelo de Evoramonte, e todo ensanguentado. Da bicicleta não caíra, pois não se vislumbrava os calções rotos, por isso perguntei quem era:

- Era um judeu como tu!

Por contágio familiar Pedal de Prata, é o mais determinado do grupo. Em compensação a mulher é a mais queixosa de todas as esposas dos ciclistas, porque ele não falha uma saída, quer chova ou faça frio. Ela acha que com esse tempo ficava melhor um centro comercial qualquer. Um domingo o Pedalzinho não apareceu. A malta pressupôs que para cumprir certos compromissos contratuais assumidos pelo matrimónio. Só quando os amigos lhe telefonaram para ir ter com eles á chegada, após o qual foi imediatamente questionado da sua ausência, porque tinha feito falta, porque não havia quem puxasse pelo grupo como ele, e porque a alegria no grupo não era a mesma. Porque, porque. Bla, bla, bla. Com voz pesarosa lá confessou:

- Mais valia ter vindo andar, a mulher não me deixou vir.

publicado por Ubicikrista às 04:45

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