10 de Maio de 2014

                                                                                                                                      NOTA prévia

Este sempre será um local onde se privilegia o coletivo, como tal, nós

 (Carmo, Jacinto, Aleixo, Murteira, Pombinho e outros invejosos)

ciclistas de sofá, aplaudimos a "pintura" das tuas façanhas

Por Mário Fonseca

…arrisquei ao mudar coisas na Foil na véspera da corrida. Baixei a ponta do selim mais um milímetro e rodei a haste de guiador para cima para ficar com os apoios dos manípulos de travão um pouco mais altos e com a inclinação mais de acordo com a posição dos braços/mãos quando pedalo de pé.

Comprei o meu gel e as barras de proteína favoritas, porque isso é que não podia falhar. As minhas panquecas funcionam para não passar fome nas voltas diárias mas para competir não resultam. Para a hidratação contei com o meu amigo Sali+.

…fui tentar pela segunda vez arrancar os quilos de porcaria que a corrente da Foil foi acumulando ao longo dos 6000 km que já tem. Já tinha tentado antes no “elefante azul” mas o óleo que estou a usar é “à prova de bala”. É claro que voltei a não conseguir limpar a transmissão em condições… fiz o melhor que consegui e sujei-me todo… eu e a roupa branca somos inimigos há 38 anos. Eu dou cabo dela e ela dá-me cabo da cabeça.

Com isto tudo almocei lá para cinco ou seis da tarde, lanchei uns minutos depois e, num três-em-um, enfardei ainda mais tudo o que me apareceu pela frente quase até ir para a cama. Nos dias anteriores às competições não gosto de comer tarde mas este dia foi mesmo “um caso à parte” no que toca a ânimo, eficiência e concentração.

Como adormeci mais cedo do que é costume, acordei a meio da noite e não conseguia voltar a adormecer… bonito! Quando o alarme tocou e interrompeu a minha “power nap” de uma hora parecia que não dormia há uma semana. Pus outro alarme para tentar dormir vinte minutos mais, que não dormi, e lá me levantei com mais genica.

Tratei de “perder algum peso” no W.C., lavei a louça que precisava para fazer as panquecas para o pequeno-almoço (coisas que podia ter preparado no dia anterior). Bebi a minha aguinha, a minha vitamina do supermercado, preparei e comi três panquecas (nem me dei conta que não bebi o cafezinho da praxe) enquanto me vestia e enchia os bolsos com a ferramenta, barras e gel. Como sou um “multi-tasker” do pior, consegui demorar mais de uma hora a fazer tudo isto, o que é quase um record para mim.

Saí de casa disparado para o Templo de Diana, onde estava instalada a partida, com 50 minutos de antecedência. Saí com um jersey, camisa interior next2skin, calção (tudo Scott) e manguitos térmicos sem ter visto a temperatura prevista mas não senti grande frio.

No local de partida fui procurar o Miguel Espadeiro para “vestir a camisola” da equipa “do dia”. Como não tenho equipa vou vestindo o jersey de quem me paga a inscrição da corrida e hoje seria o dia do GDR Canaviais – Imoviçosa (o organizador do evento). Isto queria dizer também que iria ter poucos companheiros de equipa para me ajudarem porque a maioria estaria a trabalhar na organização do evento.

Vestido a rigor lá fui para a partida e segui as indicações (erradas) que teria que dar a volta ao templo para que o chip fosse ativado… e às custas disso andei com a Foil no ar a bater nos capacetes de algumas pessoas para me chegar o mais próximo possível à linha de partida. Enquanto esperava pela partida os músculos das minhas pernas iam “dançando” um “twerk” manhoso à custa do frio e, quem sabe, um pouco por causa do nervoso. O coração não o demonstrava mas há sempre um nervosismo na partida de uma corrida, mesmo que seja a feijões.

Na linha da frente já lá estava o Vítor Lourenço (campeão nacional Master) e depois chegou o José Silva, o Vítor Gamito e mais algumas figuras importantes que ficaram com os primeiros “dorsais”, onde me incluíram sendo que eu tinha o número dez e, por brincadeira de quem me inscreveu, na lista de inscritos chamava-me “Mário Fonseca (super-mário)”, coisa que não coincidia nada com o que me ia na alma nos dias que antecederam a corrida.

Sendo eu “alérgico” à confusão dos pelotões e estando quase mil ciclistas à partida da corrida, a minha vontade era arrancar para a frente e mesmo que levasse toda a gente na roda não havia problema porque estaria imune às “falhas dos outros”. Assim pensei e quando arrancámos assim o fiz.

Quando a partida real foi dada, depois de andarmos a bater o dente pelo empedrado eborense até sairmos em direção a Reguengos de Monsaraz, fiz por manter-me na frente e responder às normais tentativas de fuga iniciais. Numa corrida de 170km, tentar uma fuga logo no início não é coisa que se faça de ânimo leve sem saber se haveria pernas para mantê-la, mas como parte do pelotão ia fazer 90km podia-se sempre ter uma boleia inicial e depois seguir e gerir a vantagem.

O Galácio foi o único “colega de equipa” que tentou fugir, que anulou fugas e que ainda me lançou na minha tentativa de ir buscar os dois ciclistas que se mantiveram na frente e que decidi perseguir. Fiquei a meio entre eles e outros três ciclistas que me seguiram. Nunca levantei o pé à espera deles porque a distância deles para o pelotão não era de fiar.
Entretanto eles chegaram-se a mim e o pelotão não se chegou muito a nós. Pouco depois com a ajuda deles colámos aos dois fugitivos. Estava iniciada a fuga que iria durar praticamente até ao Freixo, a cerca de 20 km da meta.

Assim que vi que em cinco companheiros de fuga tinha três jerseys da Peçalmodôvar percebi logo que, mais uma vez, me ia lixar. No Granfondo de Cuba foi esta mesma equipa que jogou com a vantagem numérica aliada à tática e me anulou a fuga “por dentro”!
Vivendo e aprendendo, pensei eu naquele dia, mas há sempre mais “truques na manga” e por mais corridas a que assistas sentado no sofá... não há nada melhor que aprender no terreno, com os teus erros. E como se não bastasse, um deles era o Rui Rodrigues, que há uns anos atrás ganhou muitas corridas e que também fez parte da fuga em Cuba.

Mais uma vez lá estava o Mário a fazer as coisas à sua maneira, fazendo o que sabe que é capaz de fazer, e a não dar ouvidos às teorias que tanta gente lhe quis “carimbar” sempre que se falava no “bonito” que o Mário Fonseca ia fazer no Évora Granfondo Challenge.

O vento que ia estar favorável até Reguengos ia ser o maior rival de qualquer fuga a meio do percurso e nos quilómetros finais. Se fosse uma fuga solitária então… era “a morte do artista” (preparem-se que esta frase vai voltar a aparecer na Serra d’Ossa). Por isso, era aproveitar enquanto podia para enrolar o punho. Dito e feito. A uma velocidade média brutal lá chegámos à primeira dificuldade do dia, a subida para Monsaraz, quando já só seguiam quatro elementos na fuga e não podia desejar uma pior companhia para os meus planos, porque se estar numa fuga onde há dois elementos da mesma equipa é mau, “pior que isso só mesmo três” - pensam vocês – mas há pior… porque a fuga agora tinha só quatro elementos… eu e mais TRÊS ciclistas da Peçamodovar! Um contra três… Lindo!!!

Já conhecia um deles pois já tinha vindo comigo na fuga de Cuba e nesse dia, apesar do jogo tático, ainda trabalhou para o grupo, coisa que hoje… se puxou quinhentos metros foi muito. Como ele estava sempre abrigado na roda pensei que poderia ser ele quem iria tentar levar a fuga a bom termo e “limpar-me o sebo” no final. Do mal, o menos, pensei.
A subir para Monsaraz percebo que apenas ele tinha pernas para me acompanhar. Os outros dois já tinham muita fadiga em cima.

Ainda era muito cedo para eu tentar ir-me embora, e contra três ciclistas, não tinha a mínima chance, também porque o vento ia ficar de caras e havia muito parte-pernas até ao Redondo.
Sempre que podia eu puxava um pouco mais que “a média” escolhida por eles, para ver se a vantagem para o pelotão aumentava. Foi aumentando sempre, mas o andamento foi diminuindo, principalmente nas subidas, onde estranhamente me senti sempre bem, como se tivesse perdido cinco quilos de um dia para o outro! Parece que “petisquei” ao arriscar mudar algumas coisas na Foil.

Antes de chegarmos ao Redondo fui “chamado à atenção” para não puxar muito para irmos todos juntos sem esticões porque “assim levamos a fuga a bom porto”… pois… naquele porto não entrava ninguém que não pertencesse à equipa deles, mas tudo bem, alinhei porque não tinha qualquer chance sozinho. Fomos informados pelo caminho que teríamos perto de cinco minutos de avanço para o pelotão o que me fez pensar que, apesar de apenas três dos quatro elementos da fuga estarem a contribuir para isso, a fuga poderia ter sucesso.

Entrámos no Redondo pela mesma estrada onde eu tinha passado dois dias antes (nesse dia já ia com um começo de empeno jeitoso). Passámos por Foros de Fonte Seca, terra que me diz muito, Fonte-Seca… Fon-Seca e em pouco tempo estávamos a levar uma massagem com pedras “no lombo”. E há quem pague por isso nos Spas! Pelo menos as estradas de empedrado do Redondo não são as piores da região.

Não sei se é do meu passado no Cross Country mas passo bem as zonas de empedrado e fui sempre na frente enquanto atravessámos a cidade em direção à estrada que nos levaria à Serra d’Ossa. Na zona de abastecimento ouço o Luís Basílio dizer-me: “Olha que eles são três Mário”. Esta frase devia ter feito mais sentido na minha cabeça durante os minutos que se seguiram.

À chegada a Aldeia da Serra, no sopé da Serra, voltaram as conversas. “Temos que ir juntos porque isto e porque aquilo”. De novo, senti-me muito bem na subida e, a partir do Convento, segui ao meu passo, sempre ladeado pelo Rui Rodrigues que, com tanto tempo que passou na roda de todos, era natural que ali estivesse. Assim que as inclinações atenuam vejo que um dos elementos da fuga tinha ficado muito para trás.
Era aqui que as palavras do Basílio deviam ter feito o “click” mas deixei-me levar em cantigas.
Perguntei: “Ele fica para trás?” e recebo um “Olha que ele trabalha bastante e vai ajudar-nos”.
Bem… “a vantagem nos números” ou o “dividir para conquistar” eram frases que deviam ter feito mais sentido na minha cabeça.

Esperei e, numa secção da serra onde, num dia mau, vou a 25 km/h, ia a 15…
No topo da subida ele ainda não tinha colado e só passadas algumas boas centenas de metros de descida, onde podia ter aproveitado para enrolar o punho a sério, é que o grupo se juntou de novo.
Juntou apenas para que o Rui parasse porque tinha que urinar… “A sério?”
“Ah e tal, espera por ele” – relutante, disse que não ia esperar mais e recebo um - “Se seguires eu não puxo mais” e “Não sei quê e… a morte do artista” (eu não disse que ia voltar a falar disto?). Mal sabia eu o que aí viria porque se soubesse não tinha desperdiçado aquela descida que conheço tão bem e que adoro fazer a fundo.

Quando o grupo se juntou era apenas eu quem queria recuperar o tempo perdido a tentar circular a mais de 60 km/h e… se o arrependimento matasse… pois…

Assim que chegámos ao ponto mais baixo da descida comecei a apertar na subida a caminho de Estremoz e foi aí que percebi de uma vez por todas que tinha sido muito bem enganado e que a ideia que “a união faz a força” não se aplica a quem não pertence “ao clube”.

Comecei a queimar cartucho e apenas o Rui se manteve na roda sem nunca meter a cara ao vento. Com isto tudo ao chegar a Estremoz fiquei a saber que tinha perdido três dos tais cinco minutos de vantagem que tínhamos antes da entrada na Serra d’Ossa. A partir daqui foi comer o que podia, e beber o que podia e enrolar o punho sem querer saber se vinha com alguém descansadinho na minha roda tal como já tinha feito em Cuba quando o pessoal da fuga decidiu baixar os braços e os andei a rebocar durante um porradão de quilómetros.

Tinha pela frente a subida para Evoramonte e, de vez em quando, ia olhando para trás para medir a distância para o pelotão, que começou a mostrar-se sempre que a estrada era mais direita e mais longa. Nunca pensei ser capaz de chegar a Evoramonte na frente mas foi um objetivo que defini. Desse por onde desse, pelo menos, queria chegar ali na frente para dar o dia como “ganho”.

Não só o consegui como consegui entrar na estrada que seguia para o Freixo com uma velocidade louca que me fez pensar que poderia fazer descolar o meu “companheiro” de fuga mas as perninhas frescas de quem não teve trabalho nenhum para ali chegar não me deram mais que cinco ou dez metros de vantagem que não fossem fechados quase de imediato.
Isto tudo enquanto o pelotão, aos poucos, se ia chegando a nós.

Antes de chegar à viragem para Freixo, fomos “engolidos” e como eu gosto imenso de andar em pelotão, rodeado por pessoal que parece não ter medo de cair ou de derrubar alguém, mantive-me sempre perto da cabeça do grupo que, pensava eu, ter cerca de 50 elementos. Eram mais…

Estavam lá as estrelas todas e, mais uma vez, “o cliente de Cuba” que iria acabar por também vencer aqui em Évora porque a equipa dele é claramente superior e bem organizada e mesmo que tenha mais que um atleta na fuga vai recorrer a tudo o que puder para que esta não tenha sucesso. Eu só pensava no “Fool me once, shame on you. Fool me twice, shame on me”, que é como quem diz “Engana-me uma vez, a culpa não é minha, mas engana-me duas vezes, e é bem feito porque devias ter aprendido com a primeira”!

Daqui para a frente ainda houve uma ou outra tentativa de fuga e ainda tive forças não só para lhes responder como tentar mais uma ou duas até Évora. Só porque sim e porque sou mesmo fã de grupos e não tenho medo nenhum de quedas…

Encontrei o meu super companheiro do Madrid-Lisboa, o Nuno Caeiro, que ainda tentei desafiar a fugir mas que me avisou logo que “já ia justo” (de forças). Sem ninguém para me ajudar, fui ali, sem eira nem beira, mal colocado, de nervos em franja com as razias aos carros estacionados na estrada, muitas vezes a cortar o vento àquela gente toda mas já nada poderia piorar por isso mais-valia que me sentisse seguro, coisa que à entrada de Évora deixou de ser possível.

Depois de alguns sustos lá nos aproximámos da rotunda que nos levava à subida em empedrado até à meta junto ao Templo de Diana e ainda tentei embalar por ali acima mas a aselhice de uns poucos quase me deixou parado no meio da estrada. Mesmo no finalzinho ainda ganhei alguns lugares e pensei que pudesse ter terminado nos trinta primeiros mas, com a ajuda do Miguel Espadeiro, lá me conseguem informar do espantoso quinquagésimo primeiro (que à noite confirmei no site e afinal era segundo) lugar que consegui “arrebatar”.

E pronto, fiz aquilo que queria fazer, que era entrar numa fuga, dar o meu melhor, testar os meus limites, não cair (ainda andei uns metros fora de estrada num desequilíbrio a caminho do Redondo), não furar e chegar ao fim no grupo da frente.

Missão cumprida. Fiz um bom treino em zona 4/5, ganhei mais alguma experiência e pude relembrar-me do meu valor e das minhas capacidades! Acabei com o orgulho ferido mas ao mesmo tempo humildemente inchado porque ouvi muitas pessoas à beira da estrada a incentivar-me e a chamar-me pelo nome, assim como no pelotão! Vivendo, aprendendo, arriscando e petiscando, cá vou eu, a fazer aquilo que mais gosto que é pedalar!

publicado por Ubicikrista às 14:54

Mimosos:
Mimosos disseram:
António Ladeiras: Grande super Mário, como desportista e com um relato fenomenal.
Miguel Espadeiro: Muito bom relato da etapa, coisa que não me estranha nada:-) Quer se goste mais ou menos é o SUPER MÁRIO!!
Jose Pepe: Confesso que não gosto muito de ler, mas os teus relatos fazer-me vibrar, és uma máquina tanto a pedalar como a escrever... És grande e o teu orgulho e força de vontade faz de ti o atleta que és, força
José Pombinho: São relatos como este que me que ligam à estrada através de ti . Espero por muitos mais, não esquecendo os anteriores, a solo, que, podem conter descrições de sentimentos e sensações absolutamente inéditos! Um abraço, parabéns pelo teu desempenho desportivo (porque há outras "dimensões" de viver o ciclismo).
Pedro Dias Super: Bom relato, gostei de ler todas estas palavras, tudo descrito ao pormenor
Sergio Monteiro: Simplesmente fantástico...
Jose Bttmania: Mas que belo relato! Pena não ter sido filmado. És grande! Lembra-te que ciclismo é trabalho de equipa. Tu sozinho...!
Miguel Arrojado: Participei neste evento e descobri a tua página por acaso. Excelente relato! Fiquei fã. Muito obrigado e espero que continues.
Pedro António Silva: A crónica de um ciclista a sério, merecia ser publicada num jornal !!! Parabéns !!!
Paulo André: Parabéns e obrigado por partilhares a tua experiência! Não percas a embalagem porque relatos destes não têm preço.
10 de Maio de 2014 às 15:03

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