01 de Outubro de 2009

Olá a todos:

o ano passado tive que me retirar desidratado, mas disse que voltaria para tentar conseguir uma medalha de ouro na Quebratahuesos, que é para mim a marcha cicloturista mais emblemática das que se celebram em Espanha. Dito e feito… Bom, não tão fácil: em primeiro lugar quase não baixei o pistão durante o inverno, já que me dediquei a correr a pé; em segundo lugar espetei-me previamente varias sovas para chegar lá com a base necessária (4.750 km. acumulados).

A verdade é que aos meus 41 anos e tendo família e duas cadelas, tenho que lhe dar atenção e assistência. Tanta dedicação foi difícil, mas mereceu a pena. Sobretudo porque uma vez mais a prática do desporto deu-me uma lição humana: se tens um objectivo nunca o abandones, ainda que tenhas que começar de novo. Aprende com a experiência, altera a tua preparação e tenta de novo. Se no final alcanças o teu objectivo, a satisfação pessoal é tanto maior quanto mais difícil tenha sido o caminho.

Bom menos conversa e vamos com a crónica.

Na sexta-feira o ambiente em Sabiñánigo na hora de me inscrever, era o mesmo de todos os anos: Impressionante. A quantidade de gente que se sente atraída por esta marcha, e a preparação de que todo o mundo faz gala, é digna de menção, assim como dos recursos que a organização põe em jogo para que tudo saia bem. Por isso às 9 da noite lá estava a recolher o meu dorsal e acto seguido fui para Jaca, onde tínhamos reservado o hotel (desde fevereiro) e onde fiquei de me encontrar com Javichu, um dos ciclolisteros pioneiro. Depois do jantar juntámo-nos para tomar uns refrescos de mentol e comentar a jornada do dia seguinte. De seguida fomos para a cama descansar e fiscalizar as armas.

O sábado amanheceu perfeito: sol, vento nas calmas e temperatura agradável. Eu estava na linha de partida às 8 em ponto, com tempo suficiente para não ficar demasiado atrás. Já nessa altura a fila ia a 25 mts da grade de partida. Conversando com outros participantes que estavam à minha volta, a longa meia hora passou, assim como os nervos dos minutos prévios ao chupão da saída. Nesses momentos é inevitável pensar se depois de tanta preparação teremos um dia de sorte ou não.

Bom, soa o foguete e lá vamos um ano mais a mil à hora, cruzando as ruas de Sabiñánigo, com toda a povoação e os acompanhantes colocados nos passeios, aplaudindo e animando os 4.000 ciclistas que tinham invadido a calçada.

De seguida estabilizam-se as minhas pulsações e verifico que estou num grande grupo, bastante perto do pelotão da frente, rodando a 40 ou 45 km/h a caminho de Jaca. Produz-se um corte e perco o pelotão da frente, mas passo para a frente e começo a acelerar, rapidamente entram à vez quatro ou cinco participantes mais, e entre todos vamo-nos revezando num grupo de umas vinte unidades. Após e não pouco esforço, colamos de novo ao pelotão da frente, logo a seguir a Jaca. Ufa…tenho a sensação de que me passei, então instalo-me comodamente na roda e decido não dar nem uma só pedalada a mais de momento. A estrada já empina e vamos a 35 km/h, o qual, para já, é mais que suficiente para mim.

Por alturas de Canfranc o vento começa a soprar de frente e com bastante força, embora no meio do grupo não provoque demasiado dano, se tivesse passado por aqui sozinho talvez se tornasse realmente penoso.

A montanha de Somport subo-a a um ritmo bastante vivo. Esta montanha vem mesmo a meu gosto, porque é alongada. Quem lê as minhas crónicas já sabe que não sou trepador como Faco ou Javichu…, nem mais ou menos. Este ano notei a falta dos soldados do quartel de Rioseta, em formação de passo na estrada a animar a marcha; suponho que estariam em manobras ou algo assim, porque são uma instituição.

Entrámos na estação de esqui de Candanchú por motivos publicitários, mas esta mudança de  percurso fica bastante bem, já que a estrada é mais bonita por aqui, o mesmo não acontece com o desvio até Sallent de Gachego desde Formigal, que não gostei nada e sobre a qual ouvi muitas críticas.

Na descida de Somport pelo lado francês a estrada está miserável. Relembro mentalmente os gendarmes franceses e constato que levo bebida e comida suficiente para chegar até o abastecimento do Marie Blanque, assim, só paro para vestir a capa e lanço-me vale abaixo a caminho de Escot. Espera-me uma descida de quase 40 km, das tais que acabamos cansados de tanto descer, curvar e subir.

Quando cheguei à zona dos escorregas que estão no final da descida decidi despir a capa de plástico em andamento, mas hoje levo uma camisola nova e não estou muito hábil na hora de a meter no bolso, tanto é que a deixo cair e tenho que parar para a recolher, na qual perco mais tempo do que se tivesse parado, tal como a prudência indica… de mal a menos que os que vinham atrás de mim em grupo foram rápidos na hora de se desviarem.

De seguida apanho outro grupo e chego com ele a Escot, onde começa a subida mais difícil: o Col de Marie Blanque, que nos recebe envolto em nuvens e com bastante frio. Esta montanha é a chave da Quebrantahuesos: se a consegues passar, o restante é questão de paciência; se chegas lá acima esgotado, no Portalet morres. É uma montanha muito traiçoeira, já que os primeiros 4 km. só têm subida, mas os quatro últimos são uma autentica parede, sem nenhum descanso e com inclinações que em nenhum momento baixam dos 10%, alcançando 14% nalgumas rampas. Quanto vejo o cartaz dos 4 km para o cimo da montanha reduzo para (38x27) acomodo-me na parte de trás do selim e vou ganhando altura. A fisionomia da subida é a típica das encostas que se alongam paralelas ao sentido do vale, sem curvas em arco, apenas uma longa recta que se perde entre as arvores. Vou alternado o pedalar sentado com as partes mais empinadas em que as faço de pé. Controlando, e não querendo saber se ultrapasso ou se me ultrapassam, dependente das minhas sensações e do pulsómetro, que em nenhum momento desceu das 170 ppm. e sem excessivo sofrimento, chego lá acima bastante bem, o suficiente para compor a minha figura nos últimos metros e posar para a foto que me fez o fotógrafo da prova no momento de passar no alto da montanha.

No abastecimento que se encontra na descida, paro para repor forças na minha despensa. Bebo Aquarius, como fruta e sanduíches, encho os bolsos e os bidões, e continuo a descida até Laruns. Nos 10 kms de recta que precedem esta localidade formamos um grupinho na qual todos entram à vez a puxar, o que nos permite avançar bastante depressa.

Laruns é um paraíso para os ciclistas, acima da cidade há uma rotunda, em que já fiz uma foto aqui à uns tempos atrás, antes de subir o Obisque e nela pode-se ver os seguintes indicadores: para Portalet 27 km, para Obisque 17 km (depois encontra-se Sóur, Hutacan e o Tourmalet), para Marie Blanque 18 km.

Aqui começa a ascensão a Portalet, para o qual temos que nos armar de paciência, 27 quilómetros de montanha que te dá tempo suficiente para te aborreceres, te animares, passares mal, te recuperares… o que queiras. A partir daqui o fundo de reservas é fundamental, eu subi muito bem, comecei com um grupo que subia bastante ágil e que foi descolando ao longo da ascensão, e cheguei sozinho ao cimo, tendo subido de tudo de seguida, sem parar em nenhum dos abastecimentos.

Lá no alto está um cartaz que reza: QUEBRANTAHUESOS Km 150, assim pois, faltam 55 km. até à meta. E bonita casualidade: há um Quebrantahuesos num avião voando em círculos sobre os prados do Midi de Osau.

Observo o cronometro e faço contas: levo 6 h. 35' desde a partida, sendo assim falta-me 1h. 10' para completar  55 km. dentro do tempo de medalha de ouro. O suficiente, contando que a única dificuldade que falta são os 2 kms de Hoz, e que a descida de Portalet é vertiginosa. Subo os manguitos e lanço-me de caixão à cova. Chego a ver 83 km/h no conta km. vou à procura do abastecimento, já que fiquei sem agua e começo a sentir fome.

Por alturas de Formigal: bandeiras vermelhas da Organização... Desvio na estação de esqui e descida por uma estradinha secundaria que acabava com uma subida….Grande susto, perdi demasiado tempo, já que cheio de confiança tinha parado no abastecimento. Lanço cobras e lagartos contra a Organização. Numa marcha como esta não se pode alterar o percurso clássico sem mais nem menos, as pessoas que iam no meu grupo estavam com um grande melão.

Enfim, retomo a descida, já cardíaco total e dependente do cronómetro. O alto de Hoz subo-o num suspiro, gastando já as últimas energias. Quando regressámos à estrada principal faço contas: 7h 40'… faltam-me 15 '  sendo assim, a tope.

Rapidamente organiza-se um grupo de umas 15 unidades, mas não obstante pedirmos colaboração varias vezes, só 4 é que puxamos. Por estas alturas, depois de 190 km. a malta já vai morta.

Cartaz de 5 km. para a meta, faltam-me 10', último esforço 4km., 3 km…. Parte-se o grupo e continuamos para diante os quatro que puxávamos…2 km…Pano do último km…a dar tudo…que nem um átomo de energia.

Na subida que conduz à praça onde está a meta sprintámos com tudo o que nos resta. As pessoas da assistência junto às grades do passeio e ao longo de toda esta subida aplaudem… Cruzo a meta às 16:22, isto é, sobraram-me 3'.

Objectivo conseguido, QUEBRANTAHUESOS DE OURO, no diploma figura um tempo de 7:32, significa que a organização deu 20', não sei se pelo tempo que se perde na partida, ou pela alteração do percurso. Este tempo extra foi dado a todos os que perguntei.

Subi até Jaca para um duche, mais contente que umas castanholas, até que escuto pela radio a triste noticia do falecimento de Manuel Sanromá, recém vencedor de 4 etapas na Volta ao Alentejo. Descanse em paz.

Quando desço, para ir buscar a medalha e o diploma, tenho o prazer de cumprimentar o Eduardo Chozas, que por simpatia me dedica uns minutos de conversa no meio de toda a barafunda que tinha à sua volta com a entrega dos trofeus.

Já de noite e com a minha mulher, juntámo-nos com Javichu e a sua família. Também tinha feito Ouro. Os dois coincidimos em que quiçá não voltamos a esta marcha, já que a sua preparação necessita muita dedicação, mas não haja duvidas é a melhor de todas.

Saúde e sorte nas estradas.

publicado por Ubicikrista às 14:05

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