Olá,
Regressei de Granada e passo a relatar-vos as minhas experiências a pedalar pela estrada mais alta da Europa.
Conto-vos rapidamente que aproveitei a desculpa da ciclomarcha a Veleta para passar uns dias em Granada com a minha noiva, percorrendo numerosos C.A.R. (Centros de Alto Rendimento) onde me preparei conscientemente para a subida, à base de comidonas de derivados porcinos (presunto, chouriço, lombo, morcão, morcela,...), queijo, gazpacho, todo isto regado com abundante cerveja. Semelhante acumular de reservas ajudou-me a preparar a subida de forma principalmente aeróbica, como se verá mais adiante. Recomendo este tipo de treino a qualquer um com ânsias de desfrutar da bicicleta.
Recomendo igualmente a visita a Granada, uma das cidades de Espanha mais acolhedora e bonita paraíso do cicloturista: chove pouco e há percursos para uma pessoa se fartar, tanto planos como montanhosos.
Na véspera da subida, o nosso bom amigo Fernando (sim, sim, o da De Rosa) levou-me a fazer um percurso precioso, que nem sequer ele conhecia, ao longo do vale de Quéntar. É uma estrada nova, sem nenhum trânsito, que sem duvida é a rota predilecta de muitos ciclistas granadinos. Estradas assim fazem adeptos.
Como último preâmbulo à crónica dir-vos-ei que, POR FIM, estreámos as camisolas de ciclist@s. Graças ao trabalho de equipa de vários ciclolisteros, o atraso do fabricante não pode impedir que os luzisse-mos na Subida a Veleta. Muito em breve podereis ver as fotos na web. Hoje mesmo começarei os envios das camisolas, que irão ser recebidos por quem os encomendou.
Está já a chegar a crónica...Como sempre, antes falarei da organização, pois, como sabeis, o propósito destas crónicas é servir de informação para quem queira participar nas ciclomarchas, além de entreter o pessoal. Desta vez repartirei as “porradas”, pois os do clube Pinos Genil ainda têm muito que melhorar: duas horas estive eu e o Fernando para nos inscrever-mos, num local sem ventilação e rodeados de ciclistas tão espantados como nós. Faltou o prometido impermeável para enfrentar a descida; do mal a menos que não fazia frio, porque de contrario, eu seria hoje um cubito de gelo. O churrasco final e entrega de diplomas foi um caos, numa tenda que parecia uma sauna, onde ninguém se podia sentar. Um ou outro ciclolistero acabou por abalar sem o respectivo diploma, pois iam-nos entregando a conta-gotas. Vamos ver se alguém do clube Malaguenho lhes ensina, aos granadinos, como se organiza uma marcha.
Amanheceu com sol (dificilmente podia ser de outra forma), e em Pinos Genil juntámo-nos os seis ciclolisteros: Ramón, David, Fernando, José Ramón, Juanma e eu, todos vestiditos para a ocasião. Levei o capacete para a descida, mas retirei-o do guiador (em terreno esburacado, que diria Alix?[1]) e estreei um gorro da Kelme que a minha noiva me ofereceu.
Eu ia com mais medo que vergonha, pois haviam-me falado dos efeitos da altura. 40 km. de subida também impõem respeito, mas eu já tinha enfrentado montanhas de 30 km. e sei como sofrer durante 3 horas encosta acima (quiçá por isso o evitei).
Começámos a subir, e imediatamente o José Ramón e o Juanma ficam-se. Os quatro restantes, agrupados como todo o clube que se preza, vamos pedalando tranquilamente na conversa. Ainda que a inclinação nunca passe de 7 ou 8%, tão pouco baixa do 5%, assim é, que, rapidamente ganhamos altura.
Sinto as pernas muito duras, e começam-me a doer. Não passo das 140-150 pulsações por minuto, mantendo as 60-70 pedaladas de rotação, movendo o 39x23 e, em muitas ocasiões, o 25.
Em seguida passamos a cota dos 1000 metros, e uma paisagem admirável vai ficando aos nossos pés. Aos 8 km. começa a segunda "etapa" (segundo Fernando) e o ritmo anima-se. Afortunadamente, as minhas pernas já aqueceram e sinto que vou à vontade. As pulsações oscilam entre as 130-140 e desfrutamos da paisagem e da companhia. Subimos por um ombral de uma ladeira, rodeada de árvores.
No primeiro abastecimento paramos para recolher comida e bebida. Há de tudo em abundância assim é que como fruta e asseguro umas tamaras. Só tomei o pequeno almoço e quero espantar o fantasma da pássara. Claro que, a este ritmo, posso andar horas e horas, pois estou a gastar mais as reservas de gordura (escassas habitualmente, mas nesta ocasião reforçadas pelos excessos da gastronomia andaluza) que os depósitos de glucógenio.
Começa a zona mais dura da subida, segundo Fernando. Levamos quase 15 km. e andamos já muito perto dos 2000 de altura. Depois de uns km. entre cumes, que recordam as montanhas da serra madrilena, a paisagem torna-se absolutamente de montanha. Ao dar uma curva, o píncaro de Veleta revela-se-nos, como o melhor convite para continuar-mos a pedalar.
O Ramón tinha acelerado um pouco o ritmo e, o meu orgulho de trepador, impede-me de o deixar ir. Apertei um pouco, até rondar as 160 pulsações e encontrei um ritmo que fez com que o deixe um pouco para trás. O Fernando também se fica e eu vou ultrapassando ciclistas sozinho.
Paro no segundo abastecimento para comer mais alguma fruta e repor a bebida. Se alguma coisa aprendi nestes dois anos em que me juntei ao grupo dos barrigudos, é que há que comer e, sobretudo, beber bem, para evitar desfalecimentos. Ramón passa sem parar, assim saio atrás dele e ainda conversamos um pouco, antes de que eu continue a subir sozinho, um pouco mais rápido.
A paisagem é espectacular, somente de terra e pedras, e barrancos vertiginosos. Há muitíssima gente acompanhando a marcha, que nos aplaude e nos dá ânimos, e alguns incomodam-nos com os carros. Também há muitos caminhantes que percorrem as veredas que trepam até Veleta, e que nos deitam uns olhos com uma mistura de espanto (a quem lhe ocorre subir aqui de bicicleta?) e enfado (varias centenas de ciclistas e acompanhantes não se enquadra num reconhecimento que alguém espera encontrar a 3.000 metros de altura).
É suposto pensar que terei que notar os efeitos da altitude, mas as minhas pernas não estão mais pesadas que o correspondente “a apanhar”, subindo sem interrupção, com quase 30 km. Tenho uma leve dor de cabeça, mas é ligeira, e uma vontade tremenda de urinar, mas não quero parar, assim continuo andando, andando. No último abastecimento paro um momento para “sacar” bebida e continuo a subir.
Já passámos a barreira que fecha a passagem aos carros e daqui em diante ficarei dependente apenas dos demais ciclistas, e de alguns buracos ou montões de terra e pedras que há na estrada.
Agora já estou na subida a Veleta propriamente dita. Em certas ocasiões apanho um vento de frente, que me faz ter muito frio, assim aproveito para apertar um pouco o ritmo. A estas alturas muita gente vai tocada[2], e o vento de caras não facilita as coisas, assim ultrapasso muitíssima gente (não é fantasia, mas ninguém me ultrapassou desde o segundo abastecimento). Na altura pensei que pagaria a factura, mas as minhas pulsações não passam de 165 por minuto, e mantenho com facilidade as pedaladas entre 50 e 60 (normalmente vou um pouco mais solto, mas tenho medo de me “queimar”).
Há muito tempo que não subia à alta montanha e desfruto como um ser pequenino perante o que vêem os meus olhos. Passo pelo radiotelescopio e vou-o deixando cada vez mais por baixo de mim. Nesta zona, vê-se boa parte da subida que me resta, com a estrada cheia de bicicletas, no meio de um terreno desértico. Tem algo de irreal, porque só há pessoas nas bermas das encostas, o resto é só ciclistas e montanha, muita montanha.
Começo a cruzar-me com os que já acabaram, que descem. Há zonas onde o asfalto está muito deteriorado, e os que descem cedem-nos passagem para que aproveitemos o pouco asfalto sobre o qual a bicicleta pode circular.
Quando estou a ponto de chegar ao km. 38 de ascensão, decido que posso forçar, sem medo de vir a desfalecer. Desço os pinhões do carreto até ao 21, e prego uma aceleração. Quero fazer o último quilómetro a tope, mas não posso. Resultado: tinham adiantado a meta para o km. 38,7 (mais ou menos) e quase que como os que nos recolhem os tempos.
Não só acabei como me sobram forças, faltam-me km. de estrada para prosseguir. Vim vindo a reservar-me tanto que fico com muita fome de bicicleta. Gastei 3 horas e 7 minutos, o que me diz que se me tivesse esforçado mais um pouco teria baixado das 3 horas. Voltarei outro ano, agora que já a conheço, para fazer um bom tempo.
Está fresquito, mas aguenta-se e consigo que me dei-em um saco de plástico para a descida, pois tampouco haviam levado jornais lá para cima.
Em seguida chega o Ramón, e daí a pouco o Fernando e o José Ramón. Sabemos que o Juanma sobe tranquilamente e que o David passou um mau bocado, assim subimos até mesmo ao cimo de Veleta para fazer-mos as fotos. O dia não está limpo, porque de contrario veríamos o mar e inclusive África, mas ainda assim, a vista corta a respiração. Sopra um ligeiro vento e dá-me vontade de ficar por ali a comer um bocadillo[3]. Quase no final aparecem o Juanma (que sobe com a bicicleta até ao piloto que assinala o ponto mais alto) e o David, com uma cara de “estafa”, mas contente como todos nós por ter chegado lá acima.
Estamos, quase, no tecto da Península Ibérica (só lhe ganha o Mulhacén por poucos metros), junto da estrada mais alta do continente, e, ao menos eu, sinto-me o rei do mundo. Nada é comparável a esta satisfação de completar uma subida, e muito menos se alguém a tem a seus pés, como se observasse uma maquete de toda a Serra Nevada, a cidade granadina, as Alpujarras. Como tantas vezes, depois de fazer pela primeira vez uma subida em bicicleta, já só penso em cá voltar.
[1] Jornalista da Bicisport.
[2] À rasca, mal, rotos, partidos, etc. Ouvimos pela primeira vez esta expressão em Cajabermeja, no regresso do Torcal, pela rádio volta: "Los portugueses van tocados".
[3] Pão com queijo ou fiambre, ou chouriço, etc. A chamada sanduíche.