Olá.
O que segue é a crónica, longa e sincera, da minha participação na VI Clássica Cicloturista Eduardo Chozas (ou Volta Cicloturista a Málaga) e provavelmente contem linguagem torpe e expressões somente adequadas aos adultos. Sirva isto como aviso, no caso de haver crianças na audiência.
Há duas possibilidades:
A - O meu estado de forma e moral, que não era ontem o óptimo, destorceu as sensações que tive sobre a bicicleta.
B - O Clube Ciclista Malaguenho, conjuntamente com o Circuito Cicloturismo a Fondo-Bicisport, não confiavam o suficiente na impecável organização da marcha para atrair as pessoas (todos sabem que as marchas no sul de Espanha têm poucos participantes), e ocultaram-nos o que nos esperava (a ciclomarcha aparece qualificada em todas as partes como de dureza "media").
Se algo houve da opção A, creio que mais terá havido da B, e isso não está bem. E se não, leiam a crónica e julguem vocês mesmos...
O domingo amanheceu bonito, sem demasiado calor, perfeito para a bicicleta. Não entendo como há tão poucos adeptos de ciclismo por aqui, com um clima tão privilegiado. Angel e eu chegámos a Málaga no sábado, e inscrevemo-nos, tendo a oportunidade de conhecer o Juan, do C.C. Malaguenho, que nos sorria muito, mas não nos avisou do que nos esperava. Não vimos nenhum outro malaguenho (da CicloLista) e assim não nos juntámos. Jantar com massa e o típico sono inquieto que precede as marchas (era isso que esta seria, pensava eu, das fáceis).
Assim às 8:30 ali estávamos, prontos para um agradável passeio pelo mais bonito da província de Málaga, depois de uma noite mal dormida e dez dias sem tocar na bicicleta. A saída, atravessando a cidade, era neutralizada e o ritmo convidava à conversa. Alguém se aproxima e me chama pelo nome: claro, o autocolante retrovisor no capacete denuncia-me. É o Fernando, de Granada, e dedicamos um bom bocado a falar enquanto atacamos as primeiras rampas da montanha de León (ou Fuente de La Reina). Os 10 km. neutralizados por dentro de Málaga não contavam para a quilometragem do percurso, tanto assim que esperava uma subida de apenas 5 km. e resultou que...
De seguida, ao deixar para atrás as últimas casas da cidade, aparecem rampas duras, a rondar os 10%, e ponho o meu ritmo, para aquecer. O joelho incomoda-me ligeiramente e a paisagem começa a ser bonita à medida que vamos ganhando altura. Penso que para o alto da montanha não deve faltar muito, e o desnível suaviza-se e assim que subo confortável, entretido com os meus pensamentos. Pelo rabo do olho vejo alguém que se aproxima rapidamente e penso "este enfureceu-se quando o passei e vem-se a mim" mas não, é o José Ramón, de Salamanca, que vem com outro ciclolistero, e subimos vários quilómetros na conversa. Serviram-me de desculpa para afrouxar o ritmo (ainda que tampouco fosse a subir com muito entusiasmo).
"Porra, esta montanha nunca mais acaba", penso, a ver se avisto o alto e poder fazer um sprint dos que tanto gosto, ao acabar as subidas. Entretanto, ultrapassam-nos dois, com bicicletas bem equipadas e pose "desafiante". Isso é superior às minhas forças, assim, mudo para a pedaleira grande (a pendente não superaria o 5-6%) e dou-lhes uma ratada das que tanto gosto. Como resultado devo estar quase a chegar...
Seguinte curva, cartão amarelo: "3 km. para o final"! MECAGÜEN![1] Retiro a pedaleira grande e abrando. Neste momento amaldiçou-me por ter deixado o roteiro não sei onde, e por não ter um perfil da montanha como devia. Nos últimos quilómetros volta a haver rampas difíceis, e chego ao cimo sem alento, mas bem quentinho. Enquanto bebo agua e encho o bidão alcançam-me, o José Ramón e Juanma, e começamos a descer juntos, mas primeiro tenho de parar, porque tentar beber sumo pegajoso descendo a 40 ou 50 km/h por uma estrada esburacada é, no mínimo, complicado. O resto da descida faço-a sozinho, enquanto entramos na bonita comarca de Axarquía, terra verde, de pessoas caladas e estradas mal asfaltadas. Num dos buracos, o bidão sai-me disparado, mas por sorte ninguém o pisa e recupero-o sem que haja feridos.
No final da descida, um abastecimento daqueles de encher a tripa. Alguém da organização se empenha em encher-me os bolsos de comida e bebida, enquanto como banana e maçã desalmadamente, como se a minha vida dependesse disso. Chegam o Angel e o Fernando e prosseguimos a rota os três juntos. Faltam 12 km. para o Torcal e a Andaluzia na primavera é uma maravilha, e mais com o estômago cheio, assim sendo, a marcheta torna-se muito agradável, apesar de uma ou outra subida.
Aí está: o Torcal de Antequera eleva-se sobre os campos verdes. É uma impressionante mola em espiral, e parece que vamos a subir até ao mais alto. Para começar, encontramos as primeiras rampas que sobem até Villanueva de La Concepción, com percentagens, se não por cima, muito perto dos 10%. Aí, cada um vai como pode, e de seguida fico só. Chegado ao povoado, já estou esgotado, apesar de me ter ido reservando, como Ramón me recomendou. Disseram-nos que a subida, de 12 km., chega nalguns sítios a 11%, e ponho-me a imaginar os que já passei, e se os quase 9 km. que faltam serão mais suaves, para poder desfrutar da paisagem girissima.
Já as ruas de Villanueva se empinam como se tivessem pressa por chegar ao céu. Cruzamo-nos com os primeiros que descem, que nos dizem que "já não falta quase nada". Após sair da povoação voltam as rampas muito duras. Aperto-me ao selim, deitado o mais atrás que posso, e forço as costas, com apenas 60 pedaladas por minuto, pedaladas redondas e profundas, esticando bem as pernas para aproveitar cada impulso. Agora começo a sentir calor, mas o ar é seco e o suor não me incomoda. Penso que estas inclinações não podem durar muito, e que noutras ocasiões já passei por pior. Passados uns três km, que se fazem eternos, chego ao tal descanso que tinha prometido a mim mesmo. Alcanço um outro ciclista e comento-lhe o difícil que aquilo é. Responde-me, "Pois o difícil está por chegar! Agora é que te vais cagar todo!" e eu solto-lhe a primeira coisa que me passa pela cabeça, "Pois, mas merda é coisa que já não tenho, caguei-me todo para chegar até aqui". Acha tanta graça ao meu dislate que começa a rir, e rio-me também, com esse riso nervoso que dá a tensão.
Passam os 2 ou 3 quilómetros de terreno plano, demasiado escassos para o que levo em cima, e chego a uma curva à esquerda. Em frente prossegue a estrada, já a descer, mas um tipo da organização diz-me que por alí vai-se para Antequera e que isso não vale.
Encaro o último tramo da subida de pouco mais de 3 km. com duvidas, sem saber o que vou encontrar, depois da sova dos 6 primeiros. Visto isso, não me enganaram os que falavam de 11%, ou o ciclista que me dizia que o mais difícil estava ainda por chegar...
Levanto os olhos e regressa à minha cabeça a Subida aos Lagos de Covadonga. As imagens, do mais difícil da Huessera[2], tal como em câmara lenta, com as pessoas retorcendo-se sobre a bicicleta, de alguns a andar, de alguns sentados ou apoiados muito mal na bicicleta, sobrepõem-se ao que vejo. Não está demasiado calor mas o sol cai a pique, sem deixar sombras na estrada, apoiando-se na vertical e fortíssimo sobre as encostas do Torcal. A inclinação rondará os 10% mas a recta parece não ter fim, e a vista perde-se nos pedregulhos medonhos. Volto a chegar-me para trás, para que o meu peso caia sobre a roda traseira, e pedalo lenta e cansadamente, ganhando metros um a um. Custa-me manter as 50 pedaladas por minuto, que é o meu limite mínimo psicológico para subir, mas penso que aquilo não pode durar muito, e que 3 km. passam depressa. Tenho muitas dificuldades em ultrapassar as pessoas, porque quase todos vão aos esses - de novo, a recordação da Huessera - e além disso estão os carros e os ciclistas, e inclusive um autocarro, que descem, queimando as pastilhas dos travões.
Perdi já a noção do tempo, e chego ao cartaz dos 2 km. para o cimo da montanha. A minha cabeça está vazia, e começa a encher-se de desejos para eu dar meia volta. Tenho vontade de largar a bicicleta e não lhe voltar a tocar durante meses. Alcanço muita gente que vai a pé e penso que vou parar também, para descansar um pouco e poder continuar a pedalar. A andar, só subi uma montanha, foi em Angliru, que é uma coisa especial, mas em qualquer outro ou subo em cima da bicicleta, ou dou meia volta. De vez em quando ponho-me de pé, para relaxar as costas, mas as pernas começam-me a avisar de que não aguentarão muito. Ao passar o cartaz de 1 km. vejo descer o José Ramón, e chamo-o para o saudar, mas faço-o tão baixinho que nem me ouve nem me vê. Começo a notar as ameaças das cãibras nos gémeos, ao fazer força nos pedais e nos quadricípedes ao baixar o pé, e trato de pedalar sentado, apoiando-me nas costas, para descer as pulsações e não forçar tanto as pernas. Há sítios onde o desnível cede um pouco, mas apenas me serve para aliviar. Calculo que me devem faltar 200 ou 300 metros e estou noutra rampa duríssima. Diante de mim, um ciclista que havia subido mais ou menos ao meu ritmo, às vezes à frente e outras atrás de mim, desce-se da bicicleta. Ultrapasso-o e chego ao que parece o cimo da montanha, mas à minha frente há outra encosta, em curva, com uma inclinação que não convida nada a continuar. Levo as pernas no limite da contratura e recordo os Lagos, onde só pelo facto de ir com os da frente me fez prosseguir totalmente cheio de cãibras, e que me custou vários dias de recuperação. Antes de me encher todo de cãibras paro, e relaxo as pernas uns minutos. O ciclista que parou antes de mim, voltou a montar-se na bicicleta e passa-me, animando-me. "Esta tem que ser a última rampa" penso, e volto a montar-me na bicicleta. Poucos metros depois vejo pessoas da organização e o Juan numa mesa com o computador. Gritam o meu dorsal e dizem-me que continue, que não pare. Mas nesse momento, ao relaxar as pernas depois da última rampa, contratura-se toda a perna direita e travo a fundo, deixando-me cair sobre o tubo horizontal e o guiador. Há alguém da organização que se aproxima, mas digo-lhe que estou bem e que só necessito apenas de uns alongamentos. Uns metros mais adiante está o abastecimento. Procuro um sitio onde me sentar e aproveito o óleo que nos haviam dado (uma grande ideia), para massajar a sério as duas pernas.
Quando, daí a pouco, aparecem, primeiro o Fernando e depois o Angel, já me sinto muito melhor, mas ainda muito chateado por ninguém nos ter dito que o Torcal era tão duro. Todos o comparámos aos Lagos, e a nenhum lhe pareceu mais fácil. Para cumulo, ainda faltam mais de 40 km. até Málaga, e tal como nos disse Ramón, não são nada fáceis.
Tiramos umas fotos e descemos até Villanueva, onde nos espera outro magnífico abastecimento. Fico sem vontade de andar de bicicleta, mas não me resta outro remédio senão prosseguir, assim é, que carrego-me de comida (pelo menos, que não chegue a «pássara»[3] física, que a mental já eu tenho). Até Málaga são 40 km. que supõe-se ser de quase outras duas horas a pedalar. Nos 25 primeiros sucedem-se subidas e descidas, e a subida a Venta Patascortas é como uma montanha de segunda, sobretudo pelo facto de irmos todos tocados. Fernando e eu comentamos por que é que cada clube se empenha em organizar a sua Serra da Estrela particular, quando, do que se trata é de desfrutar da bicicleta e não de sofrer como condenados. A cada curva esperamos ver Málaga, mas só encontramos uma nova serra, à qual a bicicleta se agarra como a uma lapa. Por fim, completamos os últimos 15 km. todos eles serra abaixo e chegamos ao Polidesportivo, onde nos espera comida e bebida em abundância, a que lhe demos a devida atenção.
Ainda temos forças para fazer uma foto com Eduardo Chozas, e convidá-lo a visitar o site ciclistas.org e, depois do duche, partimos para Madrid.
Ignoro se voltarei a Málaga, mas certamente que será com outra mentalidade, muito diferente e que me permita desfrutar de uma marcha tão difícil como esta.
[1] Sem tradução literal.
[2] Supostamente a zona mais difícil de Covadonga.
[3] Desfalecimento. Não se anda para a frente, nem para tráse nem para os lados.