29 de Setembro de 2010

ABC prático do ciclismo

FISGADA

“Foi a tropa que fez de mim um homem",

in, entre aldeões

 

Via o filho crescer até à maioridade e sabia que ele já não teria que assentar praça, ir "às sortes", pois actualmente não existe Inspecção Militar, foi substituída pelo Dia da Defesa Nacional, e é para o menino e prá menina obrigatório. As guerras ou batalhas, o seu filho e outros, hoje travam-nas nos PC´s. O contacto com as armas, hereditário durante décadas através do Estado, quase que se perdeu. Agora só através do Paintbal, pouco a pouco substituído pelo Airsoft, com material militar, federação e campos de treino (por cá no velho armazém da fábrica da bolota e no edifício da Epac) que os obriga a levantar os fundilhos da cadeira e a correrem de uma parede para outra, simulado guerrinhas que, embora reais, para eles são virtuais, tal como em casa frente aos monitores.

Também no seu tempo de menino, a pressão de ar (flóber), fora o máximo que se podia aspirar, mas que nunca tal o motivara. Um dia o seu pai aproveitou uma forqueta de um ramo de eucalipto, ao qual atou um elástico, que poderia ter sido a coisa mais poderosa da sua infância, não fora o facto de ter vindo de um pai com carateristicas incomuns, sem nada lhe dizer, delegou nele a decisão de a usar. Era a obrigação mínima de oferta, não de ensino, mas como símbolo de masculinidade, que competia a um pai pacifista como o seu. Com eucaliptos tão altos, manuseamento raro e pontaria zero, aquilo andou lá pelo quintal até ao dia em que decidiu, pela inutilidade, desfazer-se dela.

Numa derradeira tentativa, mais para descargo de consciência, subiu os dois degraus do portado e encostou-se à umbreira da porta. Já quase escurecia, era a hora do chilrear intenso, quando os pássaros mais se aglutinavam para passarem a noite juntos e em segurança. Sem convicção lá  encostou a mão ao ombro esquerdo, enquanto o braço direito se afastava tenso. Abriu a mão e disparou na horizontal. O que se seguiu marcou-o para sempre. Parecera-lhe que derrubara algo e o coração deu-lhe um pulo. Não, aquilo não lhe podia estar a acontecer. Para se sossegar começou a encortar os cerca de 80 metros, enquanto dizia para si que podia ter sido uma folha de eucalipto atingida. Aproximou-se com o credo na boca e sentiu um baque. Confirmara-se o que temia. Ali no chão, estendida, estava a alma inocente de um passarinho muito pequenito. Fartou-se de o assoprar e de lhe pedir desculpas. Em vão. Ali mesmo jurou a si próprio nunca mais ter de pedir desculpas, a ninguém. Basta-lhe não apontar para alguém, e muito menos disparar, algo que seja, para a molhada.

publicado por Ubicikrista às 01:20

21 de Setembro de 2010

 

“Quem fez isto?” perguntaram os Alemães a Picasso, enquanto observavam a tela

Guernica, onde este imortaliza a destruição perpetuada pelos bombardeiros de Hitler

em 1936, sobre Bilbao, a que ele respondeu:

- Foram vocês!

 

Era mais uma daquelas visitas familiares em que somos arrastados sem saber porquê, mas porque sim dirá a matriarca, e além disso o teu primo mais novo faz anos. O recém ex-tropa, para não se aborrecer, aproveitou uma folha solta de um caderno de linhas, onde se guardam as receitas caseiras que se apanham da televisão, da rádio ou de alguma vizinha. A família distraída pela conversa nem reparou que começaram a cair sobre a dita folha alguns traços e rabiscos, mas ao miúdo aniversariante a curiosidade aguçou-se-lhe. ”O que é que estás a fazer?” “um desenho” “Posso ficar com ele?” “no fim”. E pegou na bicicleta acabadinha de estrear e foi dando umas voltas orgulhoso. De vez em quando voltava para espreitar a evolução dos traços. Cada vez mais espaçado e desinteressado, dividido entre a bicicleta recebida e o rumo que os desenhos estavam a tomar, longe dos traços iniciais mas ainda compreensíveis para si.

Quando anoiteceu e a visita terminou, recebeu da mão do tropa a folha: “toma”. Olhou para o desenho e não o percebendo (já à muito tempo) perguntou: “O que é?” “és tu”.

Infelizmente no dia seguinte o tropa tinha que cumprir os seus últimos dias de farda na prisão militar. Não se portara bem no destacamento que fora cumprir missão nos Açores, e a guia de marcha indicava claramente: dois dias de “gaiola”.

Regressado a casa, lá houve tempo então para desfazer as malas, dos 6 meses de afastamento do continente e da família. Num dos bolsos, das calças para lavar, saltou um quarto de papel A4 rasgado á mão, que ainda amarrotou mais, enquanto finalmente sorria. “O que é?” “o meu fim de semana na prisão”. E deu-mo, melhor: abarbatei-o, desamarrotei-o e tentei interpretá-lo.

Tentei, digo bem. Durante vários minutos olhei para um papel desigual nas pontas, aproveitado do rascunho de algum requerimento, e na parte de baixo pontificavam desenhados, calculo que no chão, dois lagartos em luta, tentando morderem-se sem razão aparente, ou por algo que não estava no desenho, enquanto lá do alto do papel, um só olho os espreitava através do centro de uma grade suspensa no ar, igual ao símbolo cardinal (#).

Foi quase com clemência que pedi, ordenei e implorei, para que me explicasse o significado daquele desenho. Insisti, barafustei e não desisti. Finalmente a anuência, talvez pela minha insistência ou mais como pena da minha ignorância:

- Sabes, um desenho ou uma tela, grande ou pequena, não se explica a ninguém. Assim como também não uma fotografia, um texto, seja ou não poesia, ou até mesmo uma peça de olaria do Redondo. E continuou a falar.

A partir desse dia passei a admirar, a valorar e a ser igual àquelas pessoas que entram num museu, e ficam horas a olhar para um quadro, tentando, agora finalmente sei-o, decifrar a história daquele momento, que o desenhador fez parar no tempo como se de uma foto se tratasse. Passei a perceber aqueles que desfrutam a ler, reler e tentar compreender melhor um texto, citação ou uma passagem literária. Finalmente já desfruto a olhar, espreitar ou observar uma foto, não como as avós desconfiadas fazem quando o neto está longe, ou mesmo no estrangeiro, quando se certificam várias vezes ao dia de que os traços fisionómicos estão no caminho certo dos do pai em criança. A explicação daquele dia fora clara:

- Enquanto lá estive na prisão, vi como os guardas brigavam entre eles, nos vários turnos. Senti que o prisioneiro não era eu, eram eles. Eu só lá ia por dois dias. Eles tinham que lá viver.

 

À memória do Chico, perecido por falta de apoio médico, na madrugada de Los Angeles,

enquanto os portugueses deliravam com a medalha de Carlos Lopes.

publicado por Ubicikrista às 13:19

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